News Breaking
Live
wb_sunny

Breaking News

'Cemitérios de anjinhos': conheça tradição que une dor, amor e fé em enterros de crianças no Ceará

'Cemitérios de anjinhos': conheça tradição que une dor, amor e fé em enterros de crianças no Ceará

Legenda: Cruzes são construídas nos cemitérios de anjinhos, que passam a ser considerados espaços sagrados - Foto: Alex Costa

Prática milenar deu origem a diversos espaços onde histórias de perdas se materializam e contam a relação da morte e da religião.

A dor de perder um bebê no parto ou pouco tempo depois do nascimento era recorrente para mães cearenses, principalmente até o século XX, devido à desnutrição e vulnerabilidade a doenças que agora são evitáveis com vacinas. Os pequenos, sem oportunidade de viver, eram vistos de forma especial pela fé e enterrados em espaços sagrados: os "cemitérios de anjinhos".

Os sepultamentos de anjinhos aconteciam em espaços comunitários ou até mesmo no quintal de casa e permanecem erguidos em diversos municípios do Ceará mesmo sem receber novas covas. São cemitérios formados a partir das crenças sobre a conexão entre o mundo físico e espiritual por meio das tradições orais.

Em meio ao sofrimento dos pais, os anjinhos são considerados como membros da família enviados ao céu para interceder por quem fica. Num contexto de alta mortalidade infantil, alguns desses espaços recebem várias gerações de uma mesma família e se tornam símbolo de fé.

“Existe uma construção milenar que associa os mortos na infância aos anjinhos. Em alguns casos, surgiam cemitérios não-oficiais exclusivamente para quem nasceu morto ou morreu logo após o nascimento”, analisa o pesquisador sobre o assunto e doutor em História, Cícero Joaquim dos Santos.

O distrito de Anjinhos, em Santana do Cariri, por exemplo, guarda no nome e no solo uma história de dor: duas crianças vítimas da seca foram encontradas mortas no século XIX. No Ceará, quando a morte chegava assim, ainda pequeno, a tradição religiosa levava o enterro para um lugar sagrado.

No território de Anjinhos, os moradores antigos contam sobre uma seca intensa no século XIX, quando a população foi surpreendida ao avistar um animal com dois caçuás (cestos, em geral, de palha). O episódio foi recontado pelo historiador Sérgio Linhares no Diário do Nordeste.

Legenda: História do Distrito de Anjinhos está ligada à seca e às tradições de cemitérios de crianças - Foto: Diário do Nordeste

Ao se aproximarem, as pessoas encontraram duas crianças mortas sendo levadas pelo animal, que estava agitado. Na época, a população acreditou que os pais, num ato de desespero, colocaram as crianças no bicho com esperança de elas serem salvas.

Por causa desse episódio, o lugar passou a ser conhecido como Alto dos Anjinhos, e ganhou o nome oficial no dia 18 de setembro de 1963, como registra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

COMO ERAM FEITOS OS ENTERROS?

Os bebês comumente recebiam os nomes José, João ou Maria e tinham o caixão pintado de branco, azul ou rosa. Além disso, havia uma espécie de batismo dos pequenos até 7 anos, porque mesmo tido como anjinhos eram considerados pagãos, como contextualiza o pesquisador.

“Em todos esses casos existe a ideia de que a criancinha não tem pecado, e logo é um anjinho, mas também tem um saber complementar: como não foram batizadas, não poderiam entrar no reino dos céus”, completa Joaquim.

Legenda: Famílias buscavam espaços considerados sagrados para o enterro dos pequenos - Foto: Alex Costa

Por isso, os sepultamentos podiam ser feitos onde a água da chuva pudesse fazer esse “batismo”. “Tem o enterramento nos quintais de casa, próximo às biqueiras, porque há ideia de que a água da chuva pode batizar o corpo das crianças mortas”, explica.

Além disso, eram buscadores lugares tido como sagrados para receber a cova dos anjinhos. “Tem casos de criancinhas que foram enterradas no curral de boi, porque esteve no presépio e é uma referência sagrada”, exemplifica o historiador.

Em todos esses casos existe a ideia de que a criancinha não tem pecado, e logo é um anjinho, mas também tem um saber complementar: como não foram batizadas, não poderiam entrar no reino dos céus.

CÍCERO JOAQUIM DOS SANTOS

Historiador

Alguns dos cemitérios de anjinhos do Ceará foram visitados e estudados por Joaquim no doutorado em História intitulado “A Mística do Tempo: Narrativas Sobre os Mortos na Região do Cariri/CE”. Confira as histórias de alguns desses espaços:

Legenda: Enterro no cemitério de anjinhos em Santa Quitéria - Foto: Alex Costa

ALTO DA CHAPADA DO ARARIPE

Uma moradora do Alto da Chapada do Araripe, de identidade preservada, viu a primeira filha morrer logo após o parto, . A cruz indicando a perda da mulher deu espaço para outras e, com o passar dos anos, 3 gerações foram sepultadas no cemitério de anjinhos.

“Eu tive que ir de moto numa vereda, porque não tinha como chegar de carro. Lá eu encontrei, no quintal de uma residência, um cemitério bem preservado com 19 crianças enterradas”, lembra Joaquim.

Algumas pessoas, inclusive, associavam os anjinhos como seres que chegavam ao céu e passavam a interceder pela família. Ainda assim, as mães compartilhavam a dor de ver vários dos rebentos sem chances de vivenciar a passagem pela Terra

CRUZ DA RUFINA

Pequenas cruzes sinalizam o sepultamento de crianças próximo a um símbolo maior conhecido como Cruz da Rufina, em Porteiras, na Região Sul do Ceará. Isso devido à devoção de alguns pais a uma jovem morta no local.

Os moradores contam que uma moça chamada Rufina foi violentamente assassinada num matagal, entre o fim do século XIX e o início do século XX, onde foi colocada uma cruz em homenagem à vítima.

Os lugares onde pessoas morrem tragicamente são tidos como um espaço de intermediação entre mundos, como o matagal associado à morte de Rufina. Nesse caso, é interpretado socialmente como transcendente.

Como numa espécie de devoção, famílias que tiveram a morte de bebês resolveram sepultar os pequenos na Cruz da Rufina. A estrutura recebeu uma cobertura e no local são colocadas imagens de santos católicos.

Legenda: A dor de perder um filho era, em algum nível, consolada pela crença do pequeno se tornar um anjinho - Foto: Alex Costa

COVA DA NEGRA

Semelhante à história da jovem Rufina, outra morte trágica deu origem a um espaço de devoção no sítio Caatingueira, na zona rural do Crato. Lá, a população conta que uma escrava fugiu da fazenda onde vivia e foi morta por uma onça na mata.

Os restos mortais foram enterrados no local onde também foi erguida uma cruz e o espaço passou a ser conhecido como Cova da Negra. Parte da população atribuía poderes extraordinários e um ponto de comunicação entre o mundo terreno e o celestial.

Além de lugar de oração para os fiéis, a Cova da Negra passou a receber túmulos de anjinhos da região.

AINDA EXISTEM CEMITÉRIOS DE ANJINHOS?

Ainda é possível encontrar cemitérios de anjinhos em lugares distantes dos centros urbanos, mas somente alguns casos específicos geram novos túmulos nesses lugares, como é o caso do aborto.

“Quando o aborto não acontece no espaço hospitalar, algumas pessoas entendem como anjinho e esses enterramentos continuam existindo, embora não seja oficial”, acrescenta Joaquim.

São saberes milenares muito fortalecidos no imaginário religioso, que faz referência a salvação dessas crianças compreendidas como anjos.

CÍCERO JOAQUIM DOS SANTOS

Historiador

Escrito por Lucas Falconery/Diário do Nordeste

Tags

Inscrição no boletim informativo

Sed ut perspiciatis unde omnis iste natus error sit voluptatem accusantium doloremque.