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Entre lendas e fatos: as histórias não contadas da cidade-fantasma do sertão cearense

Entre lendas e fatos: as histórias não contadas da cidade-fantasma do sertão cearense

Legenda: Vista da casa de uma das personagens do podcast, Nilda Lô: muitas histórias para além das ruínas - Foto: Jayanne Rodrigues

O município de Cococi foi extinto. Restou povoado deserto, duas famílias residentes no distrito, casarões abandonados e ruínas a ecoar lendas no sertão. As vivências de lá tornam viva a memória do lugar

A cidade foi amaldiçoada por um padre. O infortúnio nasceu da disputa entre o religioso e uma importante família do lugar. Por isso, quando um dos primogênitos do clã faleceu, transformou-se em serpente. No túmulo, para que não escapasse e tirasse o sossego de todos, sempre precisavam amarrar correntes e passar cimento em cima, vigas de ferro. Havia perigo de que o caixão rompesse.

Essa é a versão do imaginário popular sobre o abandono de Cococi. O local pode ser denominado de várias formas – povoação deserta, cidade-fantasma, território extinto. Mas há mais.

São muitas histórias por trás do cenário em ruínas, resultado de processos que culminaram no apagamento do município cearense, localizado no Sertão dos Inhamuns, em 1979. Desde essa época, ele se tornou um distrito de Parambu, a cerca de 37 quilômetros do local, e luta para manter viva a memória.

Lançado recentemente no site oficial e nas plataformas digitais, o podcast “As Histórias Não Contadas do Cococi” surge com o objetivo de resgatar as narrativas da região quase perdidas no tempo, não fosse o relato dos próprios moradores. O princípio, assim, é recontar a trajetória dessa localidade a partir de testemunhos inéditos, afugentando os estereótipos que o cercam.

Um dos comentários à boca pequena, por exemplo, é de que os espaços de festa na antiga cidade se chamavam "O Galo" e "A Galinha". Em um, apenas homens frequentavam; no outro, somente mulheres. Outra questão presente na série de podcasts é a dúvida acerca da própria formação de Cococi. Como o aglomerado de fazendas de uma única família acaba se configurando como um município? 

A curiosidade também se materializa em detalhes políticos. A última eleição do Cococi, em 1966, teve um diferencial: apenas 378 votos, um branco e sete nulos, para uma população com aproximadamente dois mil eleitores. Essa conta que não fecha é explicada com rigor técnico no trabalho, bem como a história de seu Luís Quililiu, falecido durante a produção do projeto, aos 85 anos. 

Legenda: Varanda da casa em que Nilda Lô vive há 12 anos, localizada no Cococi - Foto: Jayanne Rodrigues

Figura importante, viveu várias fases do distrito. Foi vaqueiro, agricultor e confeccionou malas de couro para a elite da região. No podcast, é a neta dele, Rejane, quem aprofunda a narrativa do homem. "Deixou um legado muito grande porque sempre morou nessa região. Na verdade, ele nasceu e se criou muito próximo do Cococi. O lugar que ele morou mais longe da sede do Cococi foi em Juá, a uns 18 quilômetros. Tudo dele era muito ligado à aquela comunidade, então vivenciou muita coisa, momentos bons e ruins".

VALOR À PLURALIDADE

No total, a produção em áudio, realizada durante a pandemia de Covid-19, é dividida em três episódios: “A sentença”, “Nilda e a casa” e “Quem volta”. À frente do projeto, está a jornalista Jayanne Rodrigues, 25, do município de Tauá. Ela se valeu dos enigmas de Cococi para compor o Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo em Multimeios da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Campus III – Juazeiro.

Atualmente, a sede do distrito vive em estado de abandono. Conforme a jornalista, os problemas estruturais não são apenas fruto dos efeitos do tempo, mas principalmente do descaso público, que facilita o esquecimento do lugar. As duas famílias moradoras na vila precisam buscar água em outras localidades para saciar a sede, fazer comida e tomar banho. O motivo do deslocamento é a péssima qualidade da água do poço local.

“A igreja da localidade ainda está intacta graças à dedicação das comunidades pertencentes à área territorial do Cococi. Elas também são responsáveis por realizarem anualmente a tradicional novena dedicada à Nossa Senhora Imaculada da Conceição, festa religiosa que há mais de 250 anos é mantida pelo povo”, enumera.

“Na década de 1970, Cococi estava prestes a completar 12 anos como cidade. No entanto, a marca não foi possível porque o governo federal descobriu casos de corrupção. Toda a área correspondente ao local é de propriedade privada da família Feitosa. Quando esse assunto veio à tona para o poder público, foi emitido, por meio do Diário Oficial da União, a notícia de que o município deveria ser rebaixado para distrito”.

JAYANNE RODRIGUES

Jornalista

Apesar das próprias particularidades, o povoado se assemelha a várias localidades rurais do interior cearense – indo desde a vegetação típica do semiárido brasileiro, o vai e vem de pessoas de comunidades vizinhas, o telefone rural até a popularização da tecnologia, a exemplo de wi-fi. Afinal, viver na vila do Cococi não significa estado de retrocesso.

“Agora, mesmo que o atrativo principal sejam as ruínas, há muita história por trás das paredes rachadas. Por isso, defendo que é uma narrativa que precisa ser contada de maneira plural, levando em consideração as vozes que se extrapolam para além do monopólio de uma família”, defende a jornalista.

Legenda: Registro da exposição "Cococi", de Rubens Venâncio e Fernando Jorge, em maio de 2016- Foto: Rubens Venâncio e Fernando Jorge

REFERÊNCIAS E CURIOSIDADES

O primeiro episódio do podcast, “A sentença”, responde algumas perguntas de caráter definidor para a existência do local: Por qual motivo o município se tornou uma povoação abandonada? Quem são as pessoas responsáveis por trazer novos fatos dessa narrativa hoje?

“Nilda e a casa”, por sua vez, segundo episódio, mergulha na trajetória pessoal de uma das únicas habitantes do distrito, ao passo que "Quem volta” finaliza a série com a seguinte questão: Como a devoção popular pode ser uma ferramenta para preservar a memória de um local? A partir daí, a produção envereda pela festa de Nossa Senhora Imaculada Conceição, padroeira de Cococi, responsável por renovar a fé dos moradores e manter pulsante a história do vilarejo.

“No podcast, tentei contar a história do Cococi a partir dos relatos pessoais dos moradores. Acredito ser essencial diversificar a escuta de fontes. Deixar para trás aquela pergunta do senso comum, ‘Por que você mora aqui?’, e partir para uma conversa intimista e generosa. Foi com essa perspectiva que encontrei, nas trajetórias das pessoas, muitas semelhanças com a minha vida”, detalha Jayanne.

Segundo ela, imergir no objeto de investigação levando em conta a memória dos habitantes foi um processo desafiador. A oralidade é muito forte. Algumas vezes, a jornalista foi confrontada por conflitos de narrativas. Logo, tinha que decidir o que entraria no podcast e o que iria descartar. “Claro, é uma produção de não-ficção, mas em certos momentos senti o realismo mágico que Gabriel García Márquez descreveu em seus livros”, compara.

“Sonhos reveladores com a rota de preciosidades escondidas nas casas dos antigos coronéis foi um dos causos que ouvi dos personagens e não coloquei nos roteiros. Os moradores descrevem que aqueles que têm esse tipo de sonho devem guardar segredo e dormir sempre com as portas de casa trancadas”.

JAYANNE RODRIGUES

Jornalista

Outros depoimentos, a exemplo de um da senhora Nilda Lô, adentram o cotidiano das pessoas, mas não deixam de ser instigantes. Há aqueles sobre o preço do botijão de gás, a falta de acesso à água, e os altos e baixos da vida de um modo geral. Além de resgatar o passado, Janyanne considera importantíssimo valorizar o que temos hoje. 

Legenda: História do Cococi em dia de limpeza - Foto: Jayanne Rodrigues

O projeto, não à toa, é uma forma de humanizar aqueles que mantêm viva a memória local. “Não há continuidade da história do Cococi se não potencializarmos as comunidades que pertencem à área do distrito e que seguem se desenvolvendo. Cococi não é só passado, é também presente e futuro, até porque existem famílias vivendo naquelas localidades”.

ESPELHO DA HISTÓRIA DO CEARÁ

Jayanne sublinha que a povoação abandonada é um espelho da história do Ceará, com inúmeras vozes silenciadas e esquecidas, mas que hoje tentam documentar e se tornar protagonistas da própria história. Para ela, é fato que a colonização do Estado trouxe efeitos para diversos setores da sociedade. “Não podemos esquecer que, por décadas, os colonizadores não só do Cococi, mas também do sertão dos Inhamuns, contaram uma história única sobre o distrito”, destaca.

Nesse sentido, ela recorda o que disse a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie sobre acessarmos apenas um ângulo da narrativa: “Ela rouba das pessoas a dignidade. Enfatiza como nós somos diferentes, ao invés de como somos semelhantes”. 

Legenda: Seu Luís Quililiu, falecido durante a produção do podcast, é um dos personagens do projeto - Foto: Jayanne Rodrigues

Logo, o projeto surge não para anular ou negar o que já foi dito, mas como meio de apresentar novas abordagens e fontes sobre os causos e traços do Ceará. Nessa dinâmica, recontar e rememorar se tornam tentativas de não reproduzir erros do passado.

“Pari o podcast no meio da pandemia. Confesso que foi um desafio, pois grande parte da população ainda não estava vacinada. Não podia me colocar em risco, muito menos as fontes. O acesso ao Cococi também não é fácil para quem não tem transporte próprio; e se não for dessa maneira, em Tauá o único meio para chegar até o distrito é pau de arara. Só consegui realizar todas as visitas previstas devido às caronas de Rejane (personagem do podcast), que tem familiares no Mundo Novo – assentamento a oito quilômetros da povoação”.

A jornalista fez toda a captação de áudio com o celular, e depois partiu para escrita, narração e montagem. Ao passo que avançava na construção do podcast, também crescia a preocupação em não replicar perspectivas reducionistas, responsáveis por tratar os moradores como pessoas exóticas ou apenas produtos de audiência. 

Legenda: Segundo Jayanne Rodrigues, jornalista à frente do projeto, “o Ceará precisa começar a nomear as vozes excluídas dos microfones da mídia por séculos” - Foto: Arquivo pessoal

“Não podia repetir o teor das reportagens sensacionalistas sobre o Cococi. Nesse ponto, não bastavam apenas técnicas de jornalismo, também foi necessário amadurecimento e uma relação de confiança com os entrevistados. Eles tinham que ficar à vontade para conversar sobre qualquer assunto, desde o preço da gasolina a situações recentes de luto”.

Além disso, as fontes eram sujeitos ativos do processo do podcast. Enviavam arquivos de áudio à jornalista e opinavam sobre como poderiam contribuir. No terceiro episódio, o arco imersivo foi feito graças aos vídeos enviados por Socorro, uma das personagens, por meio do WhatsApp. Todas as participações foram indispensáveis. 

NÃO CONCLUSÕES: PROVOCAÇÕES

Sem perder o dinamismo em contar tantos detalhes, todos os caminhos do podcast levam a inserir os ouvintes em cada história, fazendo com que se sintam parte do lugar e se identifiquem com os personagens – ainda que a realidade dos moradores do distrito talvez seja bastante diferente da do público.

Por isso o projeto não traz conclusões, mas sim provocações sobre por que as coisas são como são. Por que durante tantos anos ouvimos uma única história do Cococi? O que há de novo? Para Jayanne, essa é uma possibilidade de encontrar novas maneiras de agir no mundo e inspirar outras pessoas a contarem as narrativas do próprio lugar. Ela não descarta o lançamento de uma segunda temporada da iniciativa.

Legenda: Atualmente, a sede do distrito de Cococi vive em estado de abandono - Foto: Jayanne Rodrigues

“Ailton Krenak diz que, se a gente consegue contar mais uma história, estamos adiando o fim do mundo. E se qualquer história é uma revisão, a produção em áudio tem potencial de ocupar espaços e colocar à frente pessoas antes excluídas dos holofotes”. Uma forma de mudar panoramas ainda tão marginalizados.

Apresentar os novos fatos da localidade, ela crê, pode ser uma ferramenta para perpetuar a memória de um lar que tenta a todo custo sobreviver. “O Ceará precisa começar a nomear as vozes excluídas dos microfones da mídia por séculos”.

Escrito por Diego Barbosa/Diário do Nordeste

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