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Representantes da luta antimanicomial denunciam construção de hospital psiquiátrico no Crato

Representantes da luta antimanicomial denunciam construção de hospital psiquiátrico no Crato

Imagem mostra como será área externa do hospital (Foto: Reprodução)

A unidade está prevista para ser construída em 2022, como modelo de referência no tratamento de transtornos mentais; Projeto levanta questionamento sobre um "retrocesso" na reforma psiquiátrica

O Fórum Cearense da Luta Antimanicomial publicou, na última semana, uma nota de repúdio em suas redes sociais denunciando o andamento de um projeto que visa construir um hospital psiquiátrico no Crato - iniciativa que seria proibida por lei estadual. O núcleo, vinculado à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), deve apresentar o documento às instituições do poder público da área da saúde.

Em nota, o órgão afirma que soube, por meio de notícias veiculadas em portais, que o Cariri sediaria um hospital psiquiátrico, chamado de Núcleo de Saúde Mental e com localização no município do Crato. Logo em seguida, o fórum pede um posicionamento de entidades responsáveis a respeito, citando que há leis- tanto no âmbito estadual como federal - que dispõe sobre a ilegalidade desse tipo de iniciativa.

Por exemplo, a Lei Estadual nº. 12.151, de 29 de julho de 1993, proíbe a construção e a ampliação de hospitais psiquiátricos, públicos ou privados, e a contratação e financiamento de novos leitos nesses tipos de instituições. Além disso, a norma dispôs que iniciasse na época uma extinção progressiva desses empreendimentos no Ceará, determinando que eles fossem substituídos por outros recursos assistenciais.

No âmbito federal, o fórum cita que a construção do hospital infringe a Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que "fundamenta uma política de saúde mental nos princípios da reforma psiquiátrica". Além disso, a norma  prevê "o fortalecimento da rede de atenção psicossocial, preconizado por meio do cuidado de saúde mental em liberdade nos territórios".

Por fim, os representantes do Fórum, e de outras entidades que assinam a nota, pedem para que órgãos responsáveis tomem providências, lembrando que a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa) tem poder de garantir a execução de ações para garantir o cumprimento da lei. Procurada pelo O POVO, a pasta disse não ter sido informada formalmente sobre o projeto, desconhecendo portanto a veracidade dele.

O Ministério Publico do Ceará (MPCE) também foi procurado e questionado, por meio de e-mail, se estava sabendo do projeto e se a construção obedeceria ao parâmetro judicial. No entanto, até o fechamento desta matéria a assessoria do órgão ainda estava apurando o ocorrido e não havia, por isso, dado retorno.

Iniciativa existe e estaria dentro da lei

Com base em informações dadas pelo Fórum e por alguns portais de notícias locais do Cariri, O POVO iniciou uma apuração e chegou até um dos sócios do projeto: o psiquiatra Thiago Macedo. De acordo com o profissional, o hospital é de iniciativa privada e será construído em um terreno doado pela prefeitura do Crato. As obras estão previstas para acontecer em julho de 2022 e tem previsão de custo de R$ 6 milhões.

Thiago, que também vai atuar como diretor clínico do empreendimento, informou que estava sabendo da nota de repúdio e alegou que a construção do hospital não vai infringir normas, pois a lei de 2001 não proíbe hospital psiquiátrico, mas sim o antigo método de tratamento mental, que desumaniza o paciente.

Esse modelo é conhecido como asilar e foi utilizado na época dos manicômios, consistindo em isolar o paciente da sociedade e da sua família, institucionalizando ele. "Quando a gente fala de internamento a gente retorna na ferida dos antigos manicômios, um modelo que nem de longe a gente quer se associar", pontua o especialista, destacando que a internação era feita à época sem o tratamento adequado.

Além disso, ele cita que a lei de 2001, por ser de âmbito federal e mais recente, estaria sobrepondo a lei estadual de 1993 - destacando que o Ministério da Saúde publicou diversas notas técnicas, que funcionam com o objetivo de "agregar" diretrizes. A última, divulgada em 2019, reforça a ampliação dos equipamentos voltados para atender pessoas com transtornos mentais, como hospitais psiquiátricos especializados.

O que diz a prefeitura do Crato

Procurada pelo O POVO, a prefeitura do Crato indicou um representante da Procuradoria Geral do Município para dar explicações sobre a doação do terreno e a legalidade do empreendimento. Segundo o procurador Rennan Xenofonte, o requerimento do terreno foi realizado pelos responsáveis do projeto em 2019.

"A gente tinha a noção da lei e fomos pesquisar para saber sobre a validação dela", relembra o procurador, se referindo a lei estadual, que proíbe a construção de hospitais desse porte. Foram então realizadas comparações entre esse regra e a federal, e a procuradoria interpretou que não há contradições entre elas.

Ou seja, o que estaria se propondo nas normas é um novo modelo de tratamento psiquiátrico, distante do antigo método manicomial. O procurador também frisou, assim como Thiago, que a regra federal sobrepõe a estadual. Ao entender que o empreendimento estaria com um projeto que vai no encontro da lei, a procuradoria submeteu o requerimento para o Conselho de desenvolvimento Econômico Sustentável e, com aprovação unânime, o pedido foi para Câmara Municipal - recebendo aval positivo dos vereadores.

Problemáticas sobre a construção

A discussão ao entorno de construções de hospitais psiquiátricos vai muito além de infrações de leis, representando uma luta antiga: o movimento antimanicomial. Os representantes dessa causa por décadas estiveram lutando pela transformação dos serviços psiquiátricos, que costumavam desumanizar o indivíduo com transtorno mental, isolando ele em ambientes conhecidos como manicômios ou hospícios.

Em 2001, com a promulgação da lei 10.216 - conhecida como lei antimanicomial - foi promovido um consenso sobre a reforma psiquiátrica no Brasil. O principal objetivo da norma é garantir que o individuo com transtornos mentais tenha seus direitos e seja respeitado, sendo tratado com humanidade. Assim, a internação do paciente é aconselhada apenas se o tratamento fora de equipamentos não for eficaz. 

Vários hospícios e manicômios do País foram fechados nos anos seguintes a promoção da reforma. Na própria região do Cariri, a Casa de Saúde Santa Teresa, um hospital psiquiátrico que existia desde 1970, fechou as portas em 2016. O momento da desativação do espaço foi relembrado pelo Fórum Cearense da Luta antimanicomial, em nota de repúdio publicada contra a construção do hospital no Crato.

"O fechamento de suas instalações é um marco da luta antimanicomial no Ceará. Assim, a construção do hospital psiquiátrico no Crato representa mais um passo da atual política de retrocesso da saúde mental do país", destacou o órgão em documento.

Para melhorar a politica de atendimento a saúde mental, foi estabelecida uma portaria em 2011 que determinou a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), estabelecendo pontos de atenção para o atendimento de pessoas com problemas mentais ou usuários dependentes de crack, álcool e outras drogas. 

A Rede integra o Sistema Único de Saúde (SUS), sendo composta por serviços e equipamentos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, leitos de atenção integral (em hospitais gerais), entre outros.

Anderson Carvalho, psicólogo sanitarista e analista de políticas públicas, destaca que mesmo com o avanço promovido pela reforma, clínicas particulares ainda são abertas, utilizando de outros nomes como "tentativa de driblar a legislação estadual". O profissional explica que a internação em hospitais psiquiátricos, entre outros, reforça o preconceito e a estigmatização sobre as pessoas com transtornos mentais.

O psicólogo destaca que a abertura de hospitais desse porte representa um retrocesso do modelo proporcionado pela reforma psiquiátrica. "A pessoa com necessidades de cuidado e com transtornos mentais não é um incapaz, é uma pessoa que precisa de cuidado integral, que é o que a atenção psicossocial oferece. A questão é que o governo não incentiva, não apoia esses equipamentos", aponta, criticando a falta de investimento em equipamentos da RAPS.

No caso da construção da unidade do Crato, Carvalho defende uma iniciativa pública, onde o estado primeiro estuda a necessidade do atendimento psiquiátrico e, em seguida, abre leitos específicos em enfermarias regionalizadas em hospitais gerais, conforme os processos e diretrizes do planejamento e gestão do SUS.

"Não há uma justificativa clínica para que o hospital psiquiátrico exista. Não significa que a gente é contra a internação, ela pode ser feita em outros dispositivos da rede, como CAPS, que tenham condições para tal e leitos especializados em enfermarias de hospitais gerais", destaca.

Como vai funcionar o projeto

O psiquiatra e sócio do hospital que será construído no Crato, Thiago Macedo, pontua que a reforma psiquiátrica é "um movimento que caminha", e destaca que algumas estruturam tratam apenas "o sintoma" do indivíduo. No ambiente proposto pelo projeto, o paciente seria "tratado ao todo", junto a família e no convívio com outros pacientes, recebendo um tratamento "não asilar" - sob atenção de uma equipe multidisciplinar.

Imagem mostra como será área externa do hospital (Foto: Reprodução)

Serão cerca de 30 leitos, acessíveis de forma privada ou por meio de plano de saúde, a depender de convênios. "Nosso projeto nasce do chão, do conceito de criar um ambiente terapêutico onde o processo possa possibilitar o acesso a novos modos de se relacionar, com musicoterapia, yoga, educação física, vai ter campo, piscina. O objetivo é fazer o Cariri ser referência de acolhimento em saúde mental", explica.

Recebendo pessoas com transtornos mentais e dependentes químicos, o hospital irá proporcionar uma internação que dure o tempo mais "breve" e "eficaz possível", conforme aponta representante. O modelo é diferente do adotado antigamente, onde o individuo permanecia internado por muito tempo e acabava perdendo sua autonomia. Segundo Macedo, o projeto prevê a "garantia da civilidade dos seus pacientes".

GABRIELA ALMEIDA/O POVO ONLINE

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